Brain Hacks - Edição Especial (Vieses nas Demandas de Saúde)
Pílulas efetivas e seguras de inteligência
Não é sexta, mas resolvi jogar aqui algumas pílulas relacionadas à palestra que proferi ontem, em Curitiba, sobre “Vieses Cognitivos nas Demandas de Saúde”…
Pra começar, algumas curiosidades sobre o efeito placebo.
Efeito Placebo
O efeito placebo ocorre quando uma substância inativa produz efeitos terapêuticos em um paciente que acredita estar tomando um medicamento eficaz. Embora a explicação seja psicológica, o efeito é real na perspectiva neurológica, ou seja, o placebo produz mesmo uma melhora na percepção de bem-estar do paciente, e isso pode ser visto por meio de alterações cerebrais.
Duas curiosidades:
(1) A crença a respeito do preço do medicamento pode aumentar ou diminuir o poder do efeito placebo. Remédios percebidos como “mais caros” tendem a ter um efeito placebo maior do que remédios percebidos como “mais baratos”. Se tiver uma marca impressa nele, o seu efeito também é maior do que se não tiver! Fonte: WABER, Rebecca L. et al. Commercial features of placebo and therapeutic. Jama, v. 299, n. 9, p. 1016-1017, 2008.
(2) a cor da pílula também pode afetar o efeito! Pílulas vermelhas e laranjas tendem a gerar mais efeitos estimulantes. Pílulas azuis geram mais efeitos relaxantes! Brancos funcionam bem para redução da dor. Fonte: JACOBS, Keith W.; NORDAN, Frances M. Classification of placebo drugs: effect of color. Perceptual and Motor Skills, v. 49, n. 2, p. 367-372, 1979.
Logo da Cochrane
Cochrane é uma fundação criada para ajudar na tomada de decisões em saúde, alicerçada na medicina baseada em evidências. Aqui a explicação sobre o logo:
O símbolo da Colaboração Cochrane é formado por uma figura que representa, em sua parte central, um gráfico de metanálise de sete ensaios clínicos randomizados. A metanálise que serviu de modelo para a figura, na época da criação do logo, foi relativa a um estudo sobre gravidez e cuidados perinatais. Cada linha horizontal simboliza o resultado de um desses trabalhos. Eles procuravam responder à pergunta: o uso de corticosteroides no período próximo ao nascimento de bebês prematuros diminui a mortalidade neonatal? O resultado dessa metanálise indicou que a resposta para a questão é afirmativa e isto está representado graficamente pelo losango na parte inferior esquerda do gráfico. Esse estudo permitiu adotar essa prática clínica como conduta baseada em evidências, com um saldo de muitas vidas salvas em todo o Mundo.
Viés de Seleção e Cherry Picking
Na minha palestra, falei de vieses cognitivos que influenciam pacientes, médicos, pesquisadores, gestores e juízes… No campo da pesquisa, um viés bem interessante é o viés de seleção, que nada mais é do que olhar para os dados que apenas confirmem uma expectativa desejada, desconsiderando os dados dissonantes.
Se olharmos para o logo da Cochrane, vemos que há alguns estudos que geraram um resultado contrário à eficácia do tratamento. No entanto, a metanálise acabou por corroborar a hipótese de que o tratamento funciona (o pequeno losango representa o resultado final).
Em todas as pesquisas, há algo semelhante, em que alguns estudos podem chegar a resultados conflitantes.
O papel do pesquisador é fazer uma análise ampla e desenviesada para não escolher apenas os dados que lhe agradem. Também tratei disso em um post do Instagram sobre Cherry Picking.
Um Experimento Insano!
O Rosenham Experiment é um dos mais famosos, polêmicos e impactantes da psicologia social. David Rosenham orientou um grupo de estudantes de psicologia a se dirigir a diferentes hospitais psiquiátricos, alegando ouvir vozes em suas cabeças, descrevendo para os psiquiatras os termos “vazio”, “oco” ou “golpe”. Praticamente todos os participantes, inclusive o próprio Rosenham, foram diagnosticados como esquizofrênicos e, de imediato, internados em manicômios. Depois de internados, os pseudopacientes se comportaram normalmente, para testar o tempo que os médicos levariam para identificar que eles não tinham qualquer problema mental. O tempo médio de alta foi de 19 dias, chegando ao limite de 52 dias.
Essa demora decorreu de uma persistência de crenças. Uma vez que os pseudopacientes foram rotulados como esquizofrênicos, havia uma tendência de interpretar seus comportamentos como sintomas da doença. Por exemplo, se eles tomavam notas para registrar o que estava ocorrendo, no seu laudo médico constaria que “o paciente tem comportamento obsessivo por anotações”. Mesmo depois de liberados, ainda constou no diagnóstico que eles eram portadores de “esquizofrenia ‘em remissão’”, o que seria uma indicação de que os médicos estavam convictos do acerto do diagnóstico anterior.
Esse estudo foi uma pancada na cabeça do modelo psiquiátrico praticado nos EUA nos anos 1970, fechando instituições e modificando o diagnóstico de saúde mental dali em diante.
Porém, curiosamente, o próprio experimento foi acusado de ser enviesado. Em um recente livro escrito por Susannah Cahalan, Rosenham foi acusado de ter manipulado o experimento. Em síntese, ele não teria dado transparência aos dados, cometeu várias inconsistências metodológicas e descritivas e, o que é mais grave, deixou de levar em conta o relato de um paciente que foi tratado de forma adequada e humanizada. Ou seja, parece que o próprio Rosenham também foi picado pelo viés de confirmação e pelo cherry picking.
Aqui o link para o artigo de Roseham: em inglês e em português.
Aqui o livro da Susannah Cahalan: “O Grande Impostor: a missão secreta que mudou nossa compreensão da loucura”.
Catálogo de Vieses em Saúde - Oxford Brazil EBM ALLIANCE
A Oxford Brazil EBM Alliance disponibiliza em seu site, em português, um catálogo de vieses que pode ser útil para mapear os principais vieses cognitivos na área da saúde. É bem amplo. Usei muito no preparativo da minha palestra.
The Cognitive Bias Codex
Se quiser algo ainda mais amplo, porém não apenas voltado à saúde, vale a pena brincar com o Cognitive Bias Codex, que é um dendograma mapeando uma carrada de vieses para todos os gostos, com uma breve explicação e links para aprofundamento (via Wikipedia). Na última versão, são 188 vieses (em inglês) !
Um Artigo Assustador
SILVA, Ricardo Eccard da et al. The high “cost” of experimental drugs obtained through health litigation in Brazil. Frontiers in Pharmacology, v. 11, p. 752, 2020. Apesar de ser em inglês, é um artigo sobre a prática da judicialização da saúde no Brasil. Ideia central: os medicamentos de alto custo obtidos judicialmente provocam efeitos adversos graves em larga escala, inclusive mortes. Daí a conclusão: “muitos medicamentos de alto custo pagos pelo governo e obtidos por meio de litígios de saúde apresentaram óbitos e eventos adversos graves em programas de acesso ampliado e uso compassivo no Brasil”.
Duas Palestras que me Ajudaram Muito
Jennifer Blumenthal Barby - Biases and Heuristics in Clinical Decision Making. Uma palestra bem interessante sobre a economia comportamental das decisões médicas.
Cognitive Biases and Decision-Making in the COVID-19 Crisis - Olivier Sibony. Uma excelente palestra do Sibony (co-autor de Ruído, junto com Kahneman e Sunstein), sobre vieses cognitivos no enfrentamento da pandemia. Ele divide a análise em três momentos: (a) a conscientização do problema; (b) a resposta ao problema; (c) perspectivas de futuro. Síntese: pessoas são ruins em avaliar os riscos (para mais e para menos); especialistas são ruins em estimar e prever eventos em situações de incerteza; as pessoas tendem a aceitar facilmente em crenças irracionais; é preciso criar um método de decisão baseado em fatos e análise estratégica de dados para reduzir o impacto dos vieses cognitivos.
Livros para Ajudar a Lidar com Demandas de Saúde
Estou preparando um post enumerando alguns livros que considero relevantes para ajudar quem lida com demandas de saúde. É um rol ainda em elaboração, que devo ampliar aos poucos para publicar depois. Aqui, em primeira mão, a versão preliminar para os assinantes da Newsletter:
Mortais - Atul Gawande. Um dos livros que mais me impactou, porque mostra a importância de encarar a morte como um evento natural da vida humana. Nem sempre a busca do tratamento a todo custo é a melhor solução para o paciente. Livro para ler e mudar completamente a visão sobre a medicina.
Medicamentos Mortais e Crime Organizado: Como a Indústria Farmacêutica Corrompeu a Assistência Médica - Peter Gotzche. Um livro um tantinho enviesado contra a indústria farmacêutica, mas muito bom para ver os interesses por trás do mercado de medicamentos.
A Verdade sobre os laboratórios farmacêuticos - Marcia Angell. Mais um livro crítico da indústria farmacêutica, que explica como indústria farmacêutica, “corrompida por lucros fáceis e pela ganância”, engana e explora seus consumidores.
Ciência Picareta - Ben Goldacre - Um bom livro para entender a importância da análise científica de novas tecnologias em saúde. O autor foca muito tratamentos alternativos (como a homeopatia e as dietas milagrosas), mas a essência é a defesa de uma visão científica de mundo.
O Grande Impostor: A Missão Secreta que Mudou Nossa Compreensão da Loucura - Susannah Cahalan. Um livro espetacular sobre o experimento de Rosenham. Ajuda a compreender tanto vieses na prática da medicina em saúde mental quanto da pesquisa científica.
Direito e Políticas de Saúde - Daniel Wang. Um bom livro para entender o contexto da judicialização da saúde no Brasil. Bem útil para quem lida com demandas judiciais de saúde.
Good Ethics and Bad Choices: The Relevance of Behavioral Economics for Medical Ethics - Jennifer Blumenthal-Barby. É o livro-base da palestra da Jennifer. O que tem de bom tem de caro hahahaha
Se tiver outras sugestões, pode colocar no comentário!
Slide da Palestra
Também com exclusividade para os assinantes da Brain Hacks, o slide que usei na palestra!
Citação para Guardar para Sempre
“Qualquer amor já é um pouquinho de saúde, um descanso na loucura”. Guimarães Rosa
Pronto! Foi bem longo para uma edição especial, mas quis deixar registrado alguns tópicos que comentei na palestra.
Sexta tem mais… E fique à vontade para compartilhar!
Grande abraço!